Entenda a cultura de risco no caso Titanic

Toda e qualquer organização apresenta dois tipos de cultura: aquela pretendida pela alta administração e a real, praticada em campo. Essa última é composta de valores explícitos e implícitos, associados ao comportamento das pessoas.
 
A cultura organizacional real está para o desempenho de uma organização assim como o terroir está para o vinho. De acordo com os especialistas, o terroir influencia muito a qualidade do produto final, caracterizando-a como única, não copiável, sendo o argumento para a existência dos produtos de denominação de origem controlada (bordeaux, alentejo, etc.). 
 
A analogia cai como uma luva para o mundo organizacional. A combinação da cultura e do estilo de gestão com outros fatores que caracterizam o output de uma organização é única, praticamente impossível de ser replicada, o que torna o estudo do sucesso ou do fracasso empresarial ainda mais fascinante, obrigando-nos a ter cautela na aplicação de fórmulas excessivamente simplistas de prognóstico do futuro de uma empresa. Todavia, mesmo sendo cada caso um caso, eu sou um dos sujeitos que acreditam piamente que é possível traçar linhas gerais de análise para nortear uma reflexão sensata sobre como uma determinada organização é conduzida.
 
A cultura depende fortemente das pessoas e dos legados da organização – como as coisas foram feitas no passado e o que deu certo ou errado. Como é feita de valores arraigados a seres humanos, demora-se muito para promover mudanças.
 
Sempre fui fascinado por entender como a cultura organizacional e o modelo de gestão influenciam o desempenho de uma empresa. Em 1992, larguei um bom emprego em uma excelente multinacional, para me dedicar à consultoria em gestão e ao estudo de casos. Agreguei-me, naquele mesmo ano, à Fundação Nacional da Qualidade (FNQ) – junto à qual milito até hoje, – e venho, desde então, ajudando a moldar o modelo que é hoje a principal referência no Brasil para excelência da gestão.
 
A busca sem fim por um modelo quali-quantitativo, que nos permita julgar se uma organização é bem administrada, tem sido muito recompensadora, embora possa ser, em determinadas circunstâncias, frustrante. Não há dúvidas de que cultura e modelo de gestão são a plataforma de sustentação do sucesso empresarial. Entretanto, a frustração decorre do fato de que a maioria dos executivos lhes atribui menor importância em comparação a outros fatores, pois não são as causas imediatas, tangíveis e óbvias do sucesso (ou do fracasso). Por isso, é comum que se dê menor senso de urgência à cultura e à gestão. Desde que tive essa percepção, passei a estudar os conectores da cultura e da gestão com o desempenho organizacional, para poder convencer executivos a atropelar essa inércia.
 
O estudo analítico da história é uma ferramenta poderosa para aprendizado, apoiando o refinamento dos modelos existentes sobre o que determina o desempenho empresarial e de como os fatores críticos se inter-relacionam. 
 
Em especial, o aprendizado de casos históricos é fundamental para o processo  de Gestão de Risco, pois boa parte dele gira em torno da projeção de eventos que nunca aconteceram em uma determinada organização. Em outras palavras, para o processo ser eficaz, ele é obrigado a aprender com eventos históricos ocorridos em outras empresas.
 
Aqui é que entra o caso Titanic. Você deve estar se perguntando: mas por que cargas d’água o Titanic seria um bom tema para aprender sobre cultura de risco? Bem, para começar, o Titanic é um caso fartamente documentado, havendo diversos livros dedicados a explorar a conexão do Titanic com gestão empresarial e análise de risco. É a história mais famosa de tragédia plenamente evitável em época de paz, ou seja, sem intenção de dolo. É também um exemplo óbvio de que o uso de técnicas básicas de prevenção – simulação de contingências, treinamento, maior envolvimento do pessoal de operação, integração de informações, etc. – seriam suficientes para mitigar significativamente, ou até mesmo eliminar, o drama humano.
 
Imagino que você conheça a história do Titanic e provavelmente tenha assistido ao blockbuster de James Cameron, recordista absoluto de bilheteria da história do cinema. Pergunte a alguém a causa do naufrágio e você ouvirá uma das respostas abaixo.
 
• O Titanic raspou em um iceberg de forma desafortunada. O iceberg rasgou o casco de bombordo da proa até a popa.
• O capitão Edward John Smith foi negligente em relação aos alertas de iceberg na rota.
• Havia uma crença generalizada de que o navio era “inafundável”.
• O navio estava singrando o Atlântico em velocidade acima da que seria prudente para as condições de navegação.
• O navio tinha problemas estruturais desconhecidos à época, em função da tecnologia de construção naval.
 
As respostas acima são todas corretas e realmente explicam o acidente sob um ponto de vista estritamente técnico. Elas têm a ver com o fato de o Titanic ser uma embarcação inovadora e com a estratégia usada pela White Star Line, sua proprietária, para disputar a supremacia no setor com a Cunard, sua principal concorrente. 
 
A esmagadora maioria dos milhares de livros e filmes produzidos sobre o Titanic aborda as coisas, digamos, interessantes da história: o acidente, a vida dos passageiros famosos e anônimos, o contraste entre as classes sociais, os dramas do capitão e do projetista do navio, etc., mas não a causa-raiz: o contexto cultural que permitiu, e até incentivou que o capitão do navio assumisse sozinho riscos excessivos, inimagináveis, quando os analisamos à luz dos protocolos atuais de navegação.
 
O Titanic é um ícone de fim e de início de duas eras: em 1912, a revolução industrial inglesa chegara ao seu ápice junto com o Império Britânico e grandes corporações começavam a controlar o mundo. Pela primeira vez, o conceito de que uma empresa precisava prestar contas a todas as partes interessadas ganhou chão, pois o principal executivo de uma grande corporação foi cobrado ferozmente pela opinião pública – a imprensa e o povo nas ruas, não a rainha ou o arcebispo – por impactos sociais causados por um ato falho de sua organização.
 
Empresas de transporte marítimo ainda têm estruturas organizacionais das áreas operacionais baseadas na hierarquia militar, em especial nas embarcações. E não é só a estrutura organizacional que é similar: a cultura também, mesmo que não se trate de organizações voltadas para a defesa. Não é à toa que os acidentes do Costa Concordia e do Exxon Valdez têm em comum com o Titanic justamente o contexto cultural e um protagonista autocrático, ou seja, o capitão. Se isso ainda ocorre em 2014, imagine como era em 1912, com velhos lobos do mar forjados em combate, herdeiros da tradição naval do século anterior.
 
Vários elementos da cultura saudável de risco não estavam a bordo do Titanic:
 
• O posicionamento claro da alta administração em relação a quais riscos eram aceitáveis e quais eram inaceitáveis, posicionamento esse que deveria ser disseminado para todos.
• Manutenção de fluxo ágil de informações sobre risco para cima e para baixo na hierarquia, sem medo de consequências.
• Encorajamento de whistle blowing, ou seja, possuir canais para as pessoas reportarem eventos e incidentes que evidenciem descolamento em relação ao posicionamento da alta administração.
• Questionamento constante dos métodos decisórios da organização, para obter um padrão de alerta.
 
Como já vimos, o acidente do Titanic ocorreu em uma situação rotineira de navegação no Ártico. Imagino que muitas pessoas no nível de comando intermediário da tripulação tenham ficado preocupadas com a postura blasé do capitão, que determinou a manutenção normal do curso e foi dormir, sem gerar qualquer plano especial de alerta aos perigos evidentes. Imagino, também, que eles devem ter pensado: “o que se há de fazer? Sempre foi assim...”. Infelizmente, eles não puderam comprovar isso em seus depoimentos, porque morreram no acidente.
Loading
Comentários
Para escrever comentários, faça seu login ou conecte-se pelo Facebook ou Linkedin
Carregando... Loading
Carregando... Loading