Colapso hídrico ou da humanidade?

Fabio Feldmann - parceiro no Núcleo de Sustentabilidade da FNQ Consultor, administrador de empresas e advogado. Foi eleito deputado federal por três mandatos consecutivos (1986 – 1998), atuou como Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo entre 1995 e 1998 e foi autor de parte da legislação ambiental brasileira. Tem participado de inúmeras organizações da sociedade civil, tanto nacionais quanto internacionais, desde o começo de sua vida profissional. Atualmente dirige seu próprio escritório de consultoria, que trabalha fundamentalmente com questões relacionadas à sustentabilidade e ao desenvolvimento sustentável.

Estamos assistindo, no Brasil, algo que rompe com o imaginário popular: uma crise de água sem precedentes e que está abalando radicalmente a noção de abundância hídrica ilimitada. Várias razões explicam essa noção. Uma delas, aliás, já estava presente na carta que Pero Vaz de Caminha enviou ao Rei de Portugal, relatando as riquezas da terra descoberta. Além disso, o fato de sermos portadores da maior bacia hidrográfica do planeta também contribui fortemente para a construção desse imaginário.
 
Estudos que demonstram cenários de escassez em algumas regiões do País existem há décadas, mas, certamente, esses não foram suficientes para fazer com que entendêssemos, com clareza, a distribuição da água e a necessidade de um consumo mais eficiente desse recurso. Alguns avanços institucionais ocorreram nos últimos anos, sendo importante ressaltar a edição da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) em 1997 e, em seguida, a criação da Agência Nacional de Águas (ANA). 
 
Pessoalmente, tive a oportunidade de ser um dos relatores da PNRH.  Inequivocamente, conseguimos construir uma legislação consistente, moldada em uma visão moderna de gestão de água. Uma das inspirações desta lei foi o Capítulo 18 da Agenda 21, um dos produtos mais prestigiados da Conferência do Rio em 1992.
 
Pouco tempo depois da edição da PNRH, com a criação da ANA, o Brasil sinalizou que passaria a tratar sua água doce com mais seriedade. Afinal, a ANA estaria para a água assim como as telecomunicações e o petróleo estariam para a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Agência Nacional de Petróleo (ANP). Ou seja, o País estaria conferindo ao tema a importância estratégica que hoje o mundo reconhece. 
 
A PNRH inovou ao estabelecer novos paradigmas de governança com a implantação dos comitês de bacia, a instituição da outorga e, especialmente, com a possibilidade da cobrança pelo uso d’água, a ser distinguida do pagamento pela coleta, pelo armazenamento, pelo tratamento e pela entrega, atividades essas usualmente realizadas pelas entidades de saneamento. Ou seja, a água deixaria de ser um bem livre e, com isso, passaria a ter um valor econômico. 
 
Mas se, de fato, o Brasil possui legislação, institucionalidade e uma série de instrumentos legais para uma boa gestão da água, como explicar a situação de pré-colapso que estamos vivendo em algumas regiões metropolitanas, com ênfase especial em São Paulo?
 
A primeira resposta, a meu ver, é compreender que os impactos gerados pela humanidade estão exigindo uma nova mentalidade e abordagem de situações. No caso de São Paulo, é importante assinalar que, durante os 80 anos de medições, nunca houve uma estiagem com esta intensidade. Ou seja, realmente é difícil afirmar que a causa principal seja o aquecimento global, mas, por outro lado, a ciência não autoriza a exclusão radical dessa hipótese. 
 
Além disso, a urbanização realizada em uma velocidade extremamente acentuada gera o fenômeno das “ilhas de calor” que, em parte, podem explicar o deslocamento das chuvas. Alguns também acreditam que a estiagem estaria diretamente ligada ao desmatamento da região Amazônica em razão da existência dos chamados “rios voadores”. 
 
O que podemos afirmar, com certeza, é que esta crise de água não pode ser desperdiçada: devem ser criadas propostas que permitam a implementação de políticas públicas mais efetivas, quer na oferta de água, quer no gerenciamento da demanda. No caso da oferta, em primeiro lugar, certamente teremos de fazer um grande esforço para compreender melhor o ciclo hidrológico e, com isso, –preparar-nos para garantir, a médio e longo prazo, a disponibilidade de água para os vários usos. 
 
É importante registrar que hoje, no mundo, ganha peso a ideia de que a humanidade alcançou uma força geológica, de modo que é possível afirmar que estamos em uma nova era, denominada Antropoceno. Este termo, cunhado pelo geoquímico Paul Crutzen, que recebeu o Prêmio Nobel de Química em 1995, refere-se às mudanças no planeta ocasionadas pelo homem a partir da Revolução Industrial. 
 
Aliada à ideia de uma nova era, a comunidade científica também está debatendo o tema dos “limites planetários” (planetary boundaries). O paradigma desses limites foi descrito em um estudo publicado na revista Nature (Vol. 461 – 24/09/2009) por uma equipe de cientistas liderada por Johan Rockström, diretor executivo do Stockholm Environment Institute. Os responsáveis pelo estudo, ao realizarem uma ampla análise dos processos existentes no sistema da Terra - cada um associado ao seu respectivo limiar que, se cruzado, pode gerar alterações ambientais inaceitáveis - identificaram nove processos para os quais é preciso definir limites planetários. São eles: mudança do clima; taxa de perda de biodiversidade (terrestre e marinha); interferência nos ciclos do nitrogênio e fósforo; diminuição do ozônio estratosférico; acidificação dos oceanos; uso mundial de água doce; mudança no uso da terra; poluição química e acúmulo de aerossóis na atmosfera. Cabe destacar, aqui, que o uso mundial de água doce já está chegando perto de seu limite.
 
No caso dos limites planetários, o que está se discutindo em última instância é a necessidade de um novo modelo de governança, que assegure um novo “pacto” da humanidade com o planeta. 
 
Nas esferas política e diplomática, teremos nesse ano duas discussões decisivas. A primeira delas seria o estabelecimento dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável em substituição aos Objetivos do Milênio, que devem contemplar, direta ou indiretamente, o tema da água. Alguns defendem que, além do direito à água potável e ao saneamento entre os critérios a serem adotados, é preciso que se faça menção aos limites planetários (embora eu defenda essa tese, entendo que, do ponto de vista diplomático, existem muitas barreiras para que isso possa vir a acontecer). 
 
A outra decisão diz respeito à Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, a ser realizada em Paris, em dezembro, na qual se pretende alcançar um novo pacto para tratar do clima do planeta. Nesse sentido, vale lembrar que a admissão de um aumento da temperatura média maior a 2°C até o fim do século pode representar um absoluto “caos” no que tange ao regime de chuvas, com impactos sociais e econômicos imprevisíveis.
 
É também importante registrar que, além da esfera política tradicional, novos arranjos institucionais estão sendo estabelecidos com o objetivo claro de garantir um melhor uso da água. Vários exemplos podem ser dados na esfera empresarial, valendo assinalar que uma das instituições representativas do setor empresarial, o World Business Council for Sustainable Development (WBCSD), tem assumido claramente a necessidade de incorporação dos “limites planetários” no planejamento estratégico e no modelo de negócio das grandes empresas.
 
Além disso, cada vez mais o consumidor “globalizado” tem exigido, na aquisição de bens e serviços, o compromisso de que seus provedores estejam atentos ao uso sustentável dos recursos, com atenção especial para a água.
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