O Brasil precisa mudar o disco

Por Marcos Bardagi, gestor da área de Portfólio, Operações e Conhecimento da FNQ

Daniel Piza, que por muitos anos abrilhantou meus domingos com sua coluna no jornal, faz falta como nunca neste final do primeiro trimestre de 2017. Em suas crônicas, na parte intitulada, “por que não me ufano”, ele abusava de sua clareza ímpar e nos punha seu veredito brutal sobre as mazelas brasileiras. O pós-carnaval é o momento em que, nas piadas de toda gente, o ano novo verdadeiramente se inicia. Mas também é quando ainda estamos no ápice de nosso ufanismo anual. E este ano foi um ano de recordes, de um ufanismo exacerbado. O ano das esperanças renovadas, pós-fundo do poço de 2016.  Piza teria muito trabalho, pois, lamentavelmente, ainda há muito poço para cavar.

A música alta, a batucada ritmada e a alegria contagiante me ajudam a refrescar a memória. Inevitável não me lembrar de um rol de frases-símbolo de nosso exagero à toda prova com nosso brilhante futuro. O que me convida, inapelavelmente, ao contraponto à la Piza. Vamos a elas:

“Brasil, abençoado por Deus”. Mas endemoniado por governos ridículos, corruptos e afins

Difícil não se desesperar nestes dias, vendo nosso País atolado em areia movediça de alta absorção. Enredado em crises inesgotáveis, com infinita capacidade de reprodução. Depois da deterioração dos fundamentos da economia do final da gestão federal anterior e da maior recessão da história do Brasil, passamos ao agonizante processo de ver todas as lideranças tangenciado as páginas policiais, diariamente.

"Brasil, bonito por natureza”. Feio, sujo e incompetente por erros de gestão

Entendo e aprovo Eduardo Gianetti quando ele, em seu recente “Trópicos utópicos”, advoga em prol de uma terceira via para o Brasil. Não encontraremos nossas soluções meramente copiando o que dá certo na OCDE. Temos de desenvolver nossos próprios caminhos em muitas áreas e nossas ilhas de excelência são provas inequívocas de nossas competências. Mas não há espaço para duvidarmos da eficiência de uma jovem velha senhora, a gestão. Esta maravilha, parte ciência, parte arte, tem as respostas. E devemos perseguir o que ela preconiza.

“Brasil, em fevereiro, tem carnaval”. E tem mortes por enxurradas, pau, pedra, tiro, vem tudo no caminho

O saldo do descalabro deste trimestre é absurdo. Mortes em rebeliões evitáveis, mortes em cidades deixadas à própria sorte, sem segurança, mortes. O nível de desemprego não arrefece, a confiança no futuro não retorna, os investimentos na formação bruta de capital fixo estão no pior nível. As águas de março não só encerram o verão. Elas varrem a esperança.

“Brasil, onde tudo que se planta, cresce”. E onde tudo que se colhe, se perde

Outra safra recorde, aparentemente. E recorde de desperdícios, por culpa de nossa infraestrutura arcaica, despedaçada por anos de desfaçatez. De 30% a 40% do que se colhe se perde na armazenagem e distribuição ineficientes, parados no lamaçal de estradas que não merecem este nome. E o que falar de nossos índices subsaarianos de perda de água? É hora de engrenarmos definitivamente a quinta marcha no saneamento, com posturas em prol de soluções criativas, que envolvem a revisão de alguns marcos do setor, como bravamente vem sido defendido por algumas lideranças do setor.

“Brasil, gigante pela própria natureza, continente a caminhar”. E como seria de outro modo, com nosso ritmo de cágado?

Para enfrentarmos com bravura nossos desafios, temos de correr, voar. O tema basilar é a educação. Por que não nos envergonhamos com nossa posição no exame Pisa? Por que sempre buscamos explicar ou, ainda pior, invalidar os critérios, argumentar que os resultados não são comparáveis? O primeiro passo para a correção é reconhecer e admitir o erro. E agir. Voando. Louvamos nosso jeitinho, mas tendo cada vez mais a acreditar que, dado o número de reformas que nunca fazemos, que sempre postergamos (tributária, trabalhista, previdenciária, política...), o que nos diferencia mesmo é a nossa habilidade inquestionável de procrastinar.

“Brasil, grande pátria desimportante, terra boa e gostosa, sujeira para todo o lado, mostra a tua cara e me diz qual o futuro da nação?”

Lideranças. De corpo e espírito limpos. Mostrem-me suas caras. Esta é a hora da liderança. É hora de lideranças de verdade. Lideranças que que creem que mudanças se constroem a partir de equipes talentosas, respeitadas e altamente motivadas. Lideranças impregnadas da confiança de que o papel das suas organizações na sociedade é maior do que o de prover a sociedade de seus produtos e serviços. Verdadeiros líderes são aqueles que, nestas horas, estão fortemente imbuídos de um pensamento maior, abrangente, para a transformação.

E a todos cabe agir como cidadãos, não se omitir e, sim, levantar a voz, congraçar, apresentar soluções, vibrar, mostrar que queremos consertar, que não toleramos ficar à mercê de ninguém, que não afundaremos.

Padre Antônio Vieira dizia que todos podem ser onipotentes, basta desejar aquilo que está ao nosso alcance. Acho que levamos o homem muito a sério e nos tornamos onipotentes. Pois almejamos muito pouco, colocamos a barra logo um tantinho só acima do nível da água. E assim nos sentimos senhores do mundo ao apenas sobreviver, fazer figuração neste mundão. Ousemos mais, por favor, não serve a onipotência com complacência.

Quanto à “sujeira para todo o lado”, creio que a sociedade está deixando claro que não pode haver o menor espaço para a gestão duvidosa, perdulária e, principalmente, sem caráter. O que exigimos são práticas inequivocamente responsáveis em relação à sociedade como um todo. Nada de fins nobres justificando meios escusos. As organizações, privadas e públicas, devem buscar seus propósitos respeitando todas as partes interessadas, minimizando externalidade negativas. Isto pode-se traduzir também como sendo a busca de uma ética empresarial impecável. A indignação de nossa sociedade fala por si neste sentido.

Mas vou encerrar a playlist com um alento. Seria Piza, construindo sobre o ombro de um outro gigante, Lenine:

Se perdeu, procure

Se é seu, segure

Se tá mal, se cure

.........................

se saiu do rumo, aprume,

se deteriorou, inove.

se desgovernou, ajeite

A FNQ tem, neste momento, um Núcleo de Estudos inteiramente dedicado às questões de Ética Empresarial e Governança. Em junho, faremos nosso Congresso de Excelência em Gestão dedicado ao tema. Estamos abrindo espaços para que todos possam fazer a sua parte. Ouse junto com a gente. Tchau, ufanismo, vamos trabalhar, vamos agir.  

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